Em uma única noite, a jornalista Francine Micheli, de 27 anos, comeu um croissant, uma barra de chocolate, quatro crepes, quatro bolinhos do tipo cupcake e dois pacotes de pururuca. Tudo isso regado a muito refrigerante. Ela também já comeu 25 bombons de uma vez. O que pode parecer pura gula é algo muito mais sério: a compulsão alimentar é um problema que atinge até 2% da população. Francine está nessa porcentagem - ela engordou 20 quilos em dois anos.
A compulsão periódica alimentar é caracterizada por surtos, momentos quando a pessoa ingere muita comida em pouco tempo. É o que o psicólogo Marco Antonio De Tommaso chama de "ataque de comer". Muitas vezes, sem nem mesmo mastigar, a paciente ingere alimentos calóricos e gordurosos sem se preocupar com o que combina ou não. Com medo de outras pessoas, ela até come escondido. "Feijão frio e, depois, banana, goiabada, ketchup e mostarda". É assim que Luis Altenfender, psiquiatra do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio Libanês de São Paulo, começa a explicar um surto de alimentação compulsiva.
Francine, moradora de Ribeirão Preto (SP), estava na Nova Zelândia quando começou a ter surtos. Vivia em uma cidade pequena longe de seus amigos e não gostava de seu trabalho. "Eu sempre fui magra e ver que eu estava engordando me dava muita raiva. Comecei a ficar deprimida", relembra a jornalista.
Não é fome
Toda essa comilança está longe de ser fome. Segundo a endocrinologista Cláudia Cozer, coordenadora do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio Libanês, é muito mais impulso do que fome. A compulsiva perde a referência de saciedade. Não tem controle sobre quantidade e come muito mais do que o que seria necessário para sua satisfação. Por trás da ingestão de tanta comida se escondem a ansiedade, a frustração e a depressão. A necessidade de ingerir qualquer coisa preenche uma ausência, um vazio. "As pessoas narram uma ‘urgência em comer', um tipo de ansiedade que as leva ao prato", explica Tommaso.
Fatores desencadeantes
Não é apenas o estado psicológico que leva alguém a desenvolver a compulsão alimentar. Ela também está ligada a fatores genéticos e ambientais. Uma dieta muito restrita pode ser o estopim para os surtos. Por isso, Claudia indica sempre a ajuda de um profissional na hora de emagrecer. Regimes elaborados por conta própria acabam por limitar demais a alimentação. A frequência dos surtos é variável, mas eles costumam acontecer entre o fim da tarde e o começo da noite. A coordenadora conta que é esse o período em que há menos serotonina, neurotransmissor relacionado às mudanças de humor, no organismo. Também é nesse horário que as pessoas costumam perder as rédeas de sua dieta.
Após passar o dia todo restringindo sua alimentação, a paciente se descontrola e é ai que vem o surto. A compulsão alimentar também pode vir acompanhada de problemas, como a bulimia nervosa. "Além da culpa por ter comido tanto, a pessoa sente- se fisicamente mal com toda aquela comida no estômago e acaba forçando o vômito para se livrar dela", diz o psiquiatra Luis Altenfender. Também há quem recorra a laxantes e diuréticos para expelir a comida.
Tratamento multidisciplinar
O tratamento da compulsão alimentar inclui acompanhamento nutricional e, especialmente, psicológico. Nos casos mais graves, há também a ajuda de um psiquiatra. É a chamada terapia cognitivo-comportamental. De acordo com Altenfender, a psicoterapia deve ajudar a paciente a buscar as causas do vazio que ela preenche com comida. Ela deve aprender a ficar atenta ao que desencadeia o surto, quais pensamentos o precedem, para assim evitá-lo. A compulsiva também costuma ser medicada com antidepressivos. Não há cura, mas a compulsão alimentar pode ser controlada. "Uma pessoa compulsiva sempre será compulsiva", explica o psiquiatra. Muitas vezes, a compulsão alimentar pode se transformar em outro tipo de compulsão. Por isso, é tão importante o acompanhamento psicológico.
Atualmente, a compulsão alimentar de Francine está controlada e ela está apenas dez quilos acima de seu peso normal. "Posso dizer que voltar a trabalhar na minha área e ter amigos e família por perto foi o que me ajudou a sair desse inferno", confessa. "Agora é reeducar o corpo, a cabeça e perder o que falta com consciência", finaliza.
Os Comedores Compulsivos Anônimos (CCA) elaboraram algumas perguntas que ajudam as pessoas a identificar a compulsão alimentar. Preste atenção às respostas "sim".
• Você come quando não está com fome?
• Você faz "farras alimentares" continuamente, sem razão aparente?
• Você sente culpa e remorso depois de comer compulsivamente?
• Você gasta muito tempo comendo ou pensando em comida?
• Você espera com prazer e antecipação pelo momento em que pode comer sozinho?
• Você planeja com antecedência essas comilanças secretas?
• Você come sensatamente em companhia de outras pessoas, compensando depois quando está sozinho?
• Seu peso está afetando seu modo de viver?
• Você tentou fazer dieta por uma semana (ou mais), somente para abandoná-la perto de sua meta?
• Você fica ressentido quando outras pessoas lhe dizem para "usar um pouco de força de vontade" para parar de comer demais?
• Apesar das evidências contrárias, você continuou a afirmar que poderia fazer dieta "por si mesmo" quando quisesse?
• Você anseia desesperadamente comer em um determinado momento, dia ou noite, fora das horas das refeições?
• Você come para fugir de aborrecimentos ou dificuldades?
• Você já esteve em tratamento por obesidade ou problemas relacionados a alimentação?
• Seu comportamento alimentar faz você ou outras pessoas infelizes?
Os CCA são um grupo nos mesmos moldes que o dos Alcoólicos Anônimos. As reuniões são frequentadas e coordenadas por pessoas que têm ou já apresentaram o distúrbio
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